Ondeante

foi tempo a descobrir

que o compasso da música é dado de dentro

que dançar é mesmo o movimento da vida

esse bailado sem pausas

em ritmos diversos

escolhidos

no vai e vem dos ruídos e dos silêncios

das pessoas e dos gestos

das histórias e dos anseios.

Obra de Michele Poirier-Mozzone, 2021.

Metade

não me agradam antigas versões minhas

estranhas escolhas, outros pensamentos

a vida se aproxima da metade de um século

e me pego em fase revisional –

entristeço-me pelos erros,

pelas histórias sedentas de paz,

pelas saudades dos que foram,

pelos que nunca deveriam ter vindo,

pelos lapsos de reflexão,

pelas prioridades invertidas,

pelas certezas desleixadas e

por só conseguir me acalmar agora,

já na metade de um século,

quando me vejo menos distraída

e mais cansada,

quando percebo que a vida

corre como flecha, sem volta,

sem freio,

no caos.

Obra de Andrea Berni

Rota

quis encontrar uma estrela em teus olhos

dançar, inda menina, nos teus palcos

ser-te atriz principal de meus melhores papeis

enquanto rompia as correntes de um vazio sem nome

e buscava alguma crença em qualquer merecimento.

esqueci-me menina nas minhas fantasias inseguras

nos desejos que busquei atrás das portas

ou entre as frestas nas janelas

quis encontrar sentido em mistérios, contos e horóscopos

e deixei de cultivar a antiga mania de temer o que não conhecia.

que dor profunda em se crescer!

fui extirpar pedaços, carcaças, lágrimas secas

mergulhei fundo e toquei o lodo que esconde nossos pés quando afundamos

larguei as roupas velhas, úmidas, floridas

deixei os cadernos, as cartas, os adereços em cores

ao lado do jazigo onde enterrei minhas antigas versões acabadas

vez ou outra procuro estrelas, agora no céu, onde repouso meus olhos

enquanto algumas lembranças percorrem meus lutos

para eu me ter finalmente presente em mim mesma.

Obra de George Clausen, 1892.